<2023 é o ano mais quente dos últimos 125.000 anos, afirma o Copernicus>. As evidências da quentura são quase tão chocantes e abundantes quanto a espessura do negacionismo e da cegueira voluntária que ainda imperam em relação à catástrofe climática em curso.
Diante do que Naomi Klein chama de “uma crise existencial para a humanidade” (This Changes Everything), o que vemos nas ruas e nas redes ainda é o reinado de uma baixíssima taxa de mobilização cidadã em relação a esta pauta. Uma apatia cívica em desproporção com a importância gigantesca de uma causa que implica não apenas a qualidade de vida dos que hoje estão vivos mas também que tipo de vida terão as futuras gerações.
Regiões do Nordeste brasileiro que chamávamos de semi-árido já não podem ser descritas assim: dado o avanço da desertificação, o termo “semi” pode ser jogado fora e certos territórios já são áridos/desértidos por inteiro (saiba mais <na matéria de Carlos Madeiro no UOL>).
Já a Amazônia, em processo de savanização, sofre com uma seca sem precedentes, com vários de seus rios atingindindo níveis extremamente preoupantes de baixa. <O INPE, repercutido pela revista Nature, sabe bem suas causas principais: o deflorestamento causado pelo agronegócio, o El Niño e o aquecimento global antropogênico>.
Como destaca <a matéria da WWF>, “rios importantes, como Negro, Solimões, Purus, Madeira e Amazonas, caminham para os menores níveis da história, enquanto cidades inteiras, cujo acesso só é possível via fluvial, correm o risco de ficarem isoladas. Em diversas localidades os rios já estão intransitáveis, impossibilitando o transporte de alimentos e medicamentos e o abastecimento de água.”
Especialistas afirmam que os Estados do Norte e Nordeste do Brasil vivem o mais grave cenário de seca dos últimos 40 anos e preocupações deveriam estar crescendo sobre o ponto-de-não-retorno que a floresta amazônica sofre um colapso irreversível de sua biodiversidade e lança o planeta a um aquecimento também impossível de reverter.
O extremismo das temperaturas em várias cidades brasileiras faz pensar numa proliferação incendiária de calor extremo – lá no <Rio 40 Graus – “Cidade Maravilha, purgatório da beleza e do caos” (pra lembrar o hit de Fernanda Abreu)> tivemos recentemente um episódio icônico. Até mesmo uma atividade aparentemente segura, como ir a um show, hoje em dia implica em perigo de morte: <uma fã de Taylor Swift, Ana Clara Benevides, de 23 anos, morreu enquanto esperava o início do espetáculo da cantora no Rio de Janeiro>; com os termômetros chegando aos 43 graus Celsius em 18/11/23, a produção tomou a decisão de adiar a apresentação prevista para aquela noite.
Não é só no Rio, é 40 graus pra todo lado: “o número de dias em que vivemos ondas de calor já passa, em média, de 50 por ano”, <noticia a Agência Pública com dados do INPE>. “De acordo com o levantamento, entre 1961 e 1990 – considerado o período de referência no estudo –, o número de dias com ondas de calor não ultrapassava sete por ano, na média. Com o aumento das emissões de gases de efeito estufa e, por consequência, da temperatura média global, eles saltaram para 20 dias no período entre 1991 e 2000; para 40 dias na década seguinte; chegando a 52 dias entre 2011 a 2020.”
Como afirma a Anistia Internacional, “a crise climática é uma crise de direitos humanos” – “bilionários poluem, a gente derrete”. Os principais causadores da catástrofe não são aqueles que mais sofrem com suas consequências. Além disso, podemos dizer que após 4 anos da política irresponsável e ecocida de Jair Genocida Bolsonaro, que favoreceu o desmatamento e o garimpo ilegais, além dos ataques etnocidas às populações indígenas, estamos diante de um pesadelo difícilimo de consertar.
O governo Lula tomou várias medidas em prol de políticas ambientais mais sábias, inclusive criando o Ministério dos Povos Indígenas hoje sob o comando de Sônia Guajajara, e os índices de combate ao desmatamento e garimpo ilegais na Amazônia já melhoraram significamente em 2023, também em virtude de ações do Ministério da Justiça e da Política Federal – mas o estrago causado pela estratégia de terra arrasada do bolsonarismo não é simples de reverter.
O brasileiro faz piada e meme de tudo: vi por aí a proposta de que as 4 estações passem a se chamar verão, ouforno, inferno e queimavera. A piada é boa, mas a nossa falta de engajamento cívico em prol de justiça climática não tem nenhuma graça. O Brasil não acompanha uma tendência global de levantes que atacam as causas na raiz da catástrofe climática que vem ocorrendo nos últimos anos: <em 2014, tivemos a People’s Climate March, que aconteceu em dezenas de metrópoles pelo mundo e que levou mais de 300.000 às ruas de NYC na maior marcha com este tema da história> – no Brasil, nada aconteceu de significativo.
<Em 2019, tivemos as Climate Strikes, puxadas pela Fridays for Future, em 150 países> – tampouco nada de relevante pode ser relatado nas terras de Pindorama (<matéria do The Guardian>). <Em 2023, 85.000 pessoas foram às ruas de Amsterdam para aquela que foi a maior marcha do clima já ocorrida na Holanda>, enquanto que no território brasileiro é inconcebível que consigamos colocar nas ruas 10% deste contingente de manifestantes. Quando é que o Brasil vai conseguir pôr um Maracanã lotado nas ruas para protestar contra as corporações e políticas governamentais que causam o problema?
A expressão “tapar o Sol com a peneira” é moeda linguística corrente no Brasil. Chegou a hora de parar de realizar o ato a que ela se refere em nossas relações com a catástofe climática. O negacionismo é cômodo, até mesmo reconfortante: fingir que o problema não existe é mais fácil e agradável do que confrontá-lo de olhos bem abertos. Mas o negacionismo é também acintoso do ponto de vista moral tanto em relação aos que hoje padecem com a injustiça ambiental quanto em relação às futuras gerações a quem estamos legando uma Terra bem mais inóspita e terrível do que aquela onde adentramos quando nascemos.
<Leonardo Sakamoto pergunta>: “A histórica onda de calor pela qual estamos passando vai mobilizar a sociedade por ações a fim de preparar o Brasil para as mudanças climáticas ou esbarrará no individualismo e no conformismo, que aposta que a resposta mais lógica é comprar um ar-condicionado mais potente?” Tudo indica que a resposta mais plausível é que o individualismo, o conformismo e o negacionismo continuem por um bom tempo a dar as cartas do jogo: quem tem poder aquisitivo vai fazer planos para comprar apartamentos-bunker com potentes aparelhos de ar-condicionado; famílias de elite vão se mudar para o Canadá ou para a Islândia; ricas corporações vão abandonar as terras devastadas pela secura e migrar para locais mais hospitaleiros…
Em um dos mais relevantes livros publicados nos últimos anos, Como Ser Um Bom Ancestral (Ed. Zahar), o filósofo australiano Roman Kznaric apelou para uma excelente metáfora para descrever nossa condição: seríamos como rãs numa panela que esquenta aos poucos, e que estariam tão acorrentadas à tirania-do-agora e à mentalidade de curto-prazo que, quando o bagulho começa a ferver, não conseguem pular fora da panela! Por isto, com cáustica ironia, o autor diz: ETs malévolos que quisessem destruir a espécie homo sapiens fariam algo bem diferente do que enviar ETzinhos verdes com arminhas laser para nos reduzir a cinzas:
“Em vez disso, inventariam algo como o aquecimento global, que iria escapar sorrateiramente do radar do cérebro humano porque nós não somos bons para agir em resposta a ameaças de longo prazo. Embora saiamos depressa do caminho de uma bola de beisebol que vem em disparada rumo à nossa cabeça, somos muito menos hábeis para lidar com um perigo que chegará daqui a vários anos ou décadas. (…) Uma das razões pelas quais não tomamos medidas eficazes numa questão como as mudanças climáticas – por ex., por meio de investimento maciço de longo prazo em energia renovável ou impostos punitiviso sobre o carbono – é que a maioria das pessoas (especialmente no Ocidente) não a experimenta como uma crise severa como o Grande Fedor de Londres ou a Segunda Guerra Mundial. Os impactos são excessivamente graduais: como uma rã que é lentamente fervida em água cuja temperatura se eleva apenas gradualmente, o calor planetário está sendo elevado lentamente e não estamos saltando fora da panela. Mesmo o número crescente de desastres relacionados ao clima – de seca no Quênia a incêndios florestais na Austrália [e na Amazônia] – não foi danoso o suficiente para provocar a resposta séria que se faz necessária. “Nossa casa está pegando fogo”, disse a ativista Greta Thunberg ao Fórum de Davos, Suíça, em 2019, “eu não quero a esperança dos senhores, quero que entrem em pânico… e ajam!” Gerar uma genuína consciência de crise e emergência pode ser o antídoto mais eficaz para nosso sonambulismo moral rumo ao colapso civilizacional.” (KRZNARIC, op cit, p. 35 – 123)
A letargia também tem a ver, em minha herética avaliação, com a força tremenda das convicções religiosas: uma imensidão de pessoas, diante do desconcerto do clima, certamente irá rezar em igrejas, mesquitas, sinagogas etc., pedindo às divindades que aplaquem sua fúria e parem de punir os pecadores com eventos climáticos extremos. Ao que o firmamento vazio de deuses irá responder com mais tempestades, tsunamis, ciclones, inundações, secas e colapsos ecosistêmicos. Não precisamos de preces e orações, nem de pensamento positivo, nem de otimismo mandatório, nem de crenças irracionais no “tudo vai ficar bem”. Estaríamos melhor se o mundo levasse mais a sério os relatórios do IPCC do que os “livros sagrados” escritos há alguns milênios por seres humanos que instituíram religiões monoteístas alienantes, autoritárias e danosamente reconfortantes.
Sei que muitos vão me xingar de pessimista patológico, ateu sujo, profeta do apocalipse, mas foda-se. O <otimismo pode ser cruel – como Lauren Berlant tentou nos ensinar>. A atitude “good vibes only” pode ser instrumental para o advento de um mundo cada vez mais bad climate all around. Não precisamos de fé cega num futuro melhor, ou de esperança insensata num deus que escreve certo por linhas tortas, mas de lucidez diante dos desafios imensos que a catástrofe em curso nos coloca. Não concebo nada mais irresponsável do que um otimismo beato ou uma procrastinação otimista diante de um cenário que nos obriga a concluir, junto com a Marcha do Clima de Amsterdam, que a crise é agora. Nossa resposta a ela também é pra já. É pra ontem. O que mais precisa acontecer para que as rãs na panela percebam que não estamos mais sendo cozidos em água morna e que tudo já está em ebulição?
Eduardo Carli de Moraes
Amsterdam, 19-11-23
Link para esta publicação: https://acasadevidro.com/catastrofeclimatica/
REFERÊNCIAS
COPERNICUS (European Union’s Earth Observation Programme). 2023 on track to be the hottest year ever. What’s next?. URL: https://climate.copernicus.eu/2023-track-be-hottest-year-ever-whats-next
GIRARDI, Giovana. Onda de calor: Brasil já passa mais de 50 dias ao ano sob altas temperaturas. In: Agência Pública, 2023. URL: https://apublica.org/2023/11/onda-de-calor-brasil-ja-passa-mais-de-50-dias-ao-ano-sob-altas-temperaturas/
MADEIRO, Carlos. Brasil registra pela primeira vez região árida de deserto, apontam estudos. In: UOL, 2023. URL: https://noticias.uol.com.br/colunas/carlos-madeiro/2023/11/11/brasil-registra-pela-primeira-vez-regioes-aridas-de-deserto.htm
RODRIGUES, Meghie. The Amazon’s record-setting drought: how bad will it be? In: Nature, 2023. URL: https://www.nature.com/articles/d41586-023-03469-6
SAKAMOTO, Leonardo. Calor levará Brasil a cuidar do clima ou só a desejar um ar-condicionado? In: UOL. URL: https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2023/11/14/calor-levara-brasil-a-cuidar-do-clima-ou-so-a-desejar-um-ar-condicionado.htm?cmpid=copiaecola
KRZNARIC, Roman. Como Ser Um Bom Ancestral. Ed. Zahar.
WWF. Crise climática: seca severa na Amazônia é agravada por desmatamento e fogo. URL: https://www.wwf.org.br/?87003/Crise-climatica-seca-severa-na-Amazonia-e-agravada-por-desmatamento-e-fogo
Somos como rãs na panela no ano mais quente dos últimos 125 mil anos – Sobre catástrofe climática e seu negacionismo. Leia em @acasadevidro: https://t.co/LakjeRVbJR
— A Casa de Vidro (@acasadevidro) November 19, 2023
Publicado em: 19/11/23
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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